No Brasil, cerca de 2 milhões de pessoas apresentam diagnóstico do Transtorno do Espectro Autista (TEA). Alguns dos desafios dessas pessoas têm a ver com: estabelecimento de relações sociais, pois preferem atividades mais solitárias; questões sociais com o objetivo de compartilhar interesses; e compreensão de expressões faciais de sentimentos e afetos. Comportamentos estereotipados podem ser observados, como bater palmas ou movimentar os braços, como que batendo asas, por exemplo. Há também maior resistência em mudar rotinas, e tantas outras alterações.
O TEA é considerado um distúrbio do neurodesenvolvimento caracterizado por manifestações comportamentais atípicas, que comprometem dois domínios centrais: déficits na comunicação e na interação social; e padrões repetitivos e restritos de comportamento, interesses ou atividades. A língua adicional, para fins deste artigo, levando em conta a língua inglesa, tende a se apresentar como uma “ilha de competência” de estudantes com autismo, ou seja, aquele conhecimento pelo qual eles têm maior afinidade.
Após dois anos de pandemia e isolamento social, é nítida a expansão da demanda com autismo na escola. E, no ensino bilíngue, que proporciona maior contato com língua adicional, como é possível colaborar?
O que sabemos sobre as características de estudantes com autismo?
Para começar, é importante termos clareza de algumas características mais comuns entre os estudantes com autismo, a fim de não adotarmos, como educadores e como família, uma postura equivocada na avaliação e na análise, que deve ser sempre feita por um especialista. No entanto, compreender essas características possibilita maior integração entre escola, famílias e especialistas, com foco no melhor desenvolvimento da criança em questão.
As características mais comuns entre as pessoas com TEA são:
- interesses restritos;
- pouco ou nenhum contato visual;
- ecolalia (repetição de elementos da fala);
- frequentemente não respondem quando são chamadas;
- resistência para expressar necessidades;
- apego a rotinas (rejeição às mudanças);
- movimentos estereotipados e repetitivos;
- frequentemente não gostam do toque físico; sentem-se incomodadas;
- podem andar na ponta dos pés;
- autoagressão (morder a si mesmas; bater em si mesmas);
- preferem brincadeiras de giros ou balanços;
- podem ter habilidades específicas bem desenvolvidas ou ilhotas de habilidades;
- aversão a barulhos altos;
- desafio para manter e sustentar a atenção por longos períodos de tempo;
- instabilidade de humor;
- limiares de dor elevados;
- preferências por brincadeiras relacionadas a enfileirar ou empilhar coisas;
- dificuldades em coordenação motora fina;
- alternância/alteração e sensibilidade sensorial.
Vale lembrar que, de acordo com a Declaração dos Direitos Humanos à Educação Inclusiva, todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade. Todo ser humano tem direito à educação. Para tanto, a inclusão deve ser pautada em:
[…] princípios éticos como a celebração das diferenças, a igualdade para todos, a valorização da diversidade, o aprendizado cooperativo, a solidariedade, a igual importância das minorias em relação à maioria e o direito a todos de terem os suportes necessários para uma vida digna, com qualidade em todos os aspectos como lazer, cultura, trabalho e educação.
Quais são as dicas importantes para educadores que atendem estudantes autistas?
Certa vez, um estudante me disse: “A escola é muito estimulante, com um monte de barulhos e muita desorganização para mim. Então eu preciso me acostumar com novos lugares e a ter um cronograma”.
Os educadores devem conversar frequentemente com todos os estudantes, em especial os autistas, sobre como o tempo será usado em sala de aula. Eles devem também buscar alertar os estudantes com autismo, sempre que possível, quando forem alterar o horário de aulas ou quando um substituto for dar a aula. Todos os estudantes de uma determinada sala de aula podem se beneficiar ao saber mais sobre o cronograma, por exemplo. Manter a rotina em cards visíveis ou na própria lousa é uma estratégia que ajuda não só os autistas, mas todos os estudantes que precisam sempre de suporte e de outras possibilidades para aprender mais e melhor sobre gestão de tempo, de tarefas, etc.
Além disso, ter informações sobre o conteúdo a ser ensinado (por exemplo, os tópicos disponíveis nas Cartas às Famílias para escolas parceiras do Be) e quais atividades serão realizadas em um determinado dia ou semana também ajuda qualquer estudante a se tornar um melhor planejador e gestor de tempo. Os educadores podem fazer com que a revisão do cronograma diário se torne parte da rotina diária em qualquer sala de aula; mesmo alguns segundos para rever essa informação pode fazer a diferença para a aprendizagem de alguns estudantes.
Estudantes com autismo podem apresentar habilidades únicas e querer interagir mais com os educadores usando portfólios – que podem incluir fotos, obras de arte, mostras de trabalhos escritos ou escolares, listas de coisas favoritas ou até mesmo vídeo ou áudio. Como portfólios podem ser uma ferramenta muito útil para os estudantes que não falam ou não usam um sistema de comunicação ainda em desenvolvimento, os educadores podem criá-lo com o objetivo de habilitar o estudante com TEA a se apresentar a novas pessoas e interagir com aquelas que ele já conhece.
O portfólio pode contemplar, por exemplo:
- Quatro páginas de fotografias (momentos com a família e com os amigos; praticando algum esporte em um parque da comunidade; trabalhando com os colegas em um experimento de biologia; e também nas férias).
- Um “currículo” curto descrevendo algumas das aulas que ele frequenta no seu segmento.
- Uma lista de seus filmes favoritos.
Proposta: Portfólios podem ser de papel, em formato de áudio ou vídeo, formais ou informais, com algumas páginas ou dezenas delas; podem incluir somente informações atuais e artefatos ou servir como um registro cumulativo da vida do estudante; podem ser apresentados com tempo preestabelecido, organizado e validado com todos. Uma dica é deixar no quadro ou visualmente acessível, de modo que possa ser acompanhado. Essas propostas podem ser aplicadas com toda a turma, já que promove um trabalho personalizado com a vivência em prática no processo de ensino e aprendizagem bilíngue e inclusivo.
Quais ações e adaptações beneficiam um ambiente escolar inclusivo?
Um trabalho realmente inclusivo e que respeite as diversidades deve compreender uma série de ações que, integradas, aumentem as chances de minimizar questões problemáticas e antecipar situações que favoreçam todos os estudantes e toda a comunidade escolar.
Desse modo, apresentamos, a seguir, algumas sugestões de ações e adaptações que podem contribuir diretamente para um ambiente educacional inclusivo:
- Promover eventos previsíveis.
- Desenvolver uma programação com marcadores de tempo.
- Realizar experiências com narrativas previsíveis.
- Evitar surpresas e mudanças sem prévia comunicação.
- Manter estrutura e rotina.
- Comunicar cuidadosamente as instruções e as consequências.
- Oferecer coerência nas reações de todos os estudantes para comportamentos inapropriados.
- Explicar quando usar gírias ou metáforas.
- Usar cuidadosamente os pronomes pessoais.
- Estimular a participação positiva.
- Criar e adaptar tarefas para que o estudante possa realizá-las.
- Dar instruções por partes, em etapas.
- Acompanhar o tempo das etapas para possíveis realizações.
- Traduzir o tempo em algo tangível e visível.
- Enriquecer a comunicação verbal com ilustrações ou figuras.
- Trabalhar com exemplos concretos.
- Evitar exercícios longos e introduzir atividades com enunciados curtos e diretos.
- Oferecer perguntas que orientem o raciocínio para a produção de um texto ou para a realização de exercícios.
- Fazer demonstrações com recursos visuais e gestos.
- Utilizar objetos e jogos manipuláveis.
- Contar com figuras de apoio que auxiliem na associação de ideias ou na transposição de conceitos para os mais variados contextos.
- Adotar técnicas de estudo e o estudante utilizar roteiros.
Um exemplo de como as habilidades linguísticas e socioemocionais desenvolvidas em sala de aula podem contribuir para a formação do autista durante seu processo escolar vem do relato de uma mãe, em um encontro que realizei com as famílias numa determinada escola. Essa mãe compartilhou que o filho autista interagia muito pouco verbalmente e que, quando falava, preferia se comunicar em inglês. É muito comum, na assessoria pedagógica, recebermos relatos como esse. Com isso, podemos concluir que o hiperfoco desses estudantes está na língua inglesa, trabalhada como língua adicional em sua rotina diária. No âmbito da psicanálise, o hiperfoco pode ser representado como a ilha de competência de um indivíduo, aquilo que lhe causa maior interesse e dedicação pelo conhecimento, contribuindo para o desenvolvimento cognitivo e criativo.
Para concluir, precisamos falar mais sobre isso. Precisamos compreender, cada vez mais, que a língua vai muito além de um elo de comunicação. Ela traz pertencimento, promove a inclusão, o bem-estar e a segurança na troca e na interação entre seres humanos. E quanto mais nós, educadores, junto com as famílias e com todos os estudantes, entendermos sobre essa temática, mais inclusiva e carregada de sentido será a escola e o fazer pedagógico.
Referências
Organização Mundial da Saúde (OMS). Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde – CID-11 – OMS; 2019.
American Psychiatric Association (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 4a Edição Revisada (DSM-IV-TR). Porto Alegre: Artmed; 2002.
Schwartzman JS, Araújo CA. Transtornos do Espectro do Autismo: Conceito e generalidades. In: Schwartzman JS, Araújo CA. Transtornos do Espectro do Autismo. São Paulo: Memnon; 2011.
Lovaas O. I. Behavioral treatment and normal educational and intellectual functioning in young autistic children. J Consult Clin Psychol 1987; 55(1)
Lovaas I. The development of a treatment-research project for develop-mentally disabled and autistic children. J Appl Behav Anal 1993; 26(4)
Bagaiolo L, Guilhardi C, Romano C. Análise Aplicada do Comportamento.