Percursos de formação bilíngue na educação básica

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Formar bilíngues ao longo do percurso da educação básica é um processo longo e complexo. Entretanto, é um caminho inevitável e extremamente gratificante para as escolas brasileiras, desde que o processo de transição curricular para esta nova proposta de educação seja bem estruturado e pautado em reflexões teóricas sobre as escolhas pedagógicas que se materializam no dia a dia da escola.

 

Com o advento das Diretrizes Curriculares para a oferta de Educação Plurilíngue no Brasil, documento aprovado e publicado pelo Conselho Nacional de Educação em 9 de julho de 2020, é preciso repensar a estruturação curricular das escolas que se propõem a oferecer Educação Bilíngue. O referido documento, que até a presente data aguarda homologação pelo Ministério da Educação, serviu como referência para que estados e municípios elaborassem e homologassem seus documentos locais no formato de deliberações e resoluções que já estão em vigor. Portanto, a transição de uma escola para a Educação Bilíngue, bem como a abertura de novas escolas nesse formato, exige, primeiramente, que a equipe de gestão consulte os documentos locais para que esse projeto esteja de acordo com as exigências vigentes

 

Os documentos estaduais e municipais seguem bem de perto o delineamento do documento nacional. Logo, a maioria define tipos de escolas que visam: formar bilíngues, carga horária mínima para diferentes projetos de formação bilíngue, características curriculares e metodológicas necessárias, formação de professores e procedimentos de avaliação. 

 

Embora o documento nacional, assim como todos os documentos regionais, estabeleça diversas normativas para a implementação da Educação Bilíngue, focaremos nossa discussão aqui em três aspectos: a organização curricular bilíngue, as metodologias e abordagens de ensino e a formação de professores. O sucesso de um projeto de Educação Bilíngue depende, principalmente, da qualidade da estruturação curricular, das boas escolhas metodológicas e dos esforços empenhados na formação inicial e continuada de professores.

 

A estrutura curricular

Os percursos de formação de bilíngues precisam ser flexíveis e adaptáveis a cada escola. O projeto pedagógico de uma escola precisa ser a inspiração para o desenvolvimento de um currículo bilíngue. O currículo é geralmente entendido como um documento que reflete a identidade escolar (Saviani, 2010; Silva, 2003). É o “coração da escola” (Moreira, 2007) e se manifesta em diferentes formas: o currículo formal, que é prescrito; o currículo real, aquele em ação no dia a dia da escola; e o currículo oculto, implícito nas ações cotidianas no ambiente escolar.

 

Moreira (2007) ressalta que há inúmeros fatores que influenciam o currículo. São fatores de ordem política, histórica, socioeconômica e cultural. Influenciados por tantos fatores, os currículos, segundo o autor, contemplam:

 

  1. a organização dos conteúdos que precisam ser aprendidos pelos estudantes e, portanto, ensinados na escola;
  2. as diferentes experiências de aprendizagem que proporcionarão crescimento aos estudantes por meio de suas vivências diárias na escola;
  3. os planejamentos que são realizados pelos professores e, muitas vezes, pela própria escola ou por sistemas de ensino parceiros;
  4. os objetivos de aprendizagem estabelecidos pela escola, juntamente com seus profissionais e/ou parceiros escolhidos;
  5. os processos de avaliação diagnóstica, formativa e somativa, que fornecem elementos orientadores que influenciam as decisões acadêmicas da escola.

 

Em um ambiente de Educação Bilíngue, os cuidados com a estruturação do currículo são ainda maiores. É necessário que a escola tenha um currículo único, integrado, conduzido em duas línguas de instrução. Desta forma, o olhar direcionado para os conteúdos, para os objetivos, para as experiências de aprendizagem proporcionadas aos estudantes, bem como para os procedimentos de avaliação, precisa ser único e representar as premissas fundadoras de cada escola.

 

Não é possível, pois, a adoção de um material didático, ou de um parceiro da escola, que apresente uma proposta linear e inflexível, posto que nenhuma proposta pedagógica enrijecida conseguirá se adequar às demandas internas de cada instituição de ensino. É necessário que o currículo parceiro seja maleável o suficiente para ser integrado ao currículo da escola.

 

Voltando às Diretrizes Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue, o currículo de uma escola bilíngue deve entender a língua adicional como ferramenta para a aquisição de aprendizagens significativas em diversas áreas do conhecimento. Porque a língua não é um fim em si mesma, mas um veículo por meio do qual se viabiliza o desenvolvimento cognitivo, socioemocional, acadêmico e profissional do estudante. Mas e as metas de desenvolvimento linguístico? Se também procuramos o desenvolvimento de fluência e o alcance da proficiência linguística, de que maneira vinculamos metas de desenvolvimento linguístico às demais metas de aprendizagem da educação básica?

 

São perguntas que não podemos deixar de responder quando pensamos em um currículo integrado na Educação Bilíngue. O sucesso de um currículo que efetivamente forma bilíngues depende também de um estudo minucioso dos objetivos de língua, parametrizados por matrizes internacionais de proficiência como a Common European Framework of Reference for Languages (CEFR) – hoje a maior e mais completa matriz de referência para o desenvolvimento de fluência e proficiência nos mais diferentes aspectos das línguas adicionais. Tal matriz estabelece objetivos de aprendizagem linguística e de desenvolvimento de competências para estudantes, desde os iniciantes até os mais proficientes. Partindo desse referencial linguístico, é possível mensurar resultados considerados válidos e confiáveis em praticamente qualquer lugar do mundo. 

 

Na Educação Bilíngue, as escolhas linguísticas precisam estar relacionadas às demais escolhas curriculares, principalmente aos objetos do conhecimento e às habilidades em foco no currículo. Assim, é preciso identificar quais conteúdos curriculares possibilitam o desenvolvimento de determinado elemento linguístico. Trata-se, portanto, de um estudo curricular profundo e especializado, e não simplesmente da escolha de temas interessantes para compor um projeto pedagógico. Articulados os objetivos de língua e de conteúdo, os caminhos de planejamento curricular vão se desenhando de forma mais consistente e os objetivos de aprendizagem vão se tornando mais claros para a escola, para os professores e para os estudantes.

 

Finalmente, é muito importante ressaltar que ambas as línguas devem ser igualmente valorizadas em um currículo bilíngue (Harmers e Blanc, 2000). O sucesso de um projeto conduzido em língua adicional é extremamente dependente dos direcionamentos dados pelo planejamento em língua de origem (língua materna). É uma relação de parceria entre as línguas, entre os professores e entre os currículos de cada língua na busca por um currículo único. 

 

As escolhas metodológicas

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue permitem que cada escola faça suas escolhas metodológicas. No entanto, exigem que as metodologias sejam compatíveis com as pesquisas em Educação Bilíngue.  

 

No campo da formação bilíngue, são diversas as propostas metodológicas possíveis. Considerando as semelhanças e as diferenças entre elas, podemos afirmar que praticamente todas colocam em foco o desenvolvimento simultâneo e consistente dos repertórios linguístico e acadêmico dos estudantes.

 

Abordagens como Problem-Based Learning (PBL), Project-based Learning (PBL) e Inquiry-based Learning (IBL) são algumas das propostas metodológicas associadas à Educação Bilíngue. Com suas especificidades, são abordagens que têm como objetivo desenvolver principalmente as habilidades de pensamento de alta complexidade. É necessário elaborar um excelente trabalho de construção linguística para que abordagens desse tipo funcionem em contextos de aprendizagem nos quais a língua de comunicação ainda é insipiente. Principalmente quando falamos em estudantes iniciantes na língua adicional, a falta de base de apoio linguística pode ser limitadora para a compreensão de conteúdos caso a problematização seja linguisticamente complexa demais para os estudantes. 

 

Nos anos 1990, tivemos o advento de uma das mais importantes abordagens metodológicas do mundo para os cenários de Educação Bilíngue. Trata-se da abordagem Content and Language Integrated Learning (CLIL). De forma mais clara e objetiva, a abordagem CLIL toma a Taxonomia de Bloom como referência e parte do fortalecimento de habilidades de pensamento de baixa complexidade (lembrar, entender, aplicar)  para então caminhar em direção àquelas de alta complexidade (analisar, avaliar e criar/propor). 

 

CLIL é um termo guarda-chuva que permite variações. Mas traz elementos que precisam estar no planejamento dos professores: definições claras de conteúdos acadêmicos (CONTENT) e de conteúdos linguísticos (COMMUNICATION); relações entre os temas curriculares abordados em seus aspectos pluriculturais (CULTURE); e percurso cognitivo a ser seguido (COGNITION), orientado pela Taxonomia de Bloom. Um planejamento bem estruturado precisa contemplar esses quatro Cs de forma articulada para assegurar o desenvolvimento tanto no campo linguístico quanto no campo acadêmico.

 

Outro aspecto importante que a abordagem CLIL ajuda a garantir é o uso consistente e constante da língua adicional como meio de comunicação entre professores e estudantes. Como a proposta é partir do mais simples para o mais complexo, o planejamento precisa propor experiências de aprendizagem que possam ser vivenciadas apenas por meio da língua adicional. A língua de origem dos estudantes não é proibida nos contextos de aprendizagem, mas precisa se tornar desnecessária na comunicação cotidiana entre professores e estudantes. O passo a passo do planejamento CLIL vai construindo os saberes linguísticos necessários para que os estudantes consigam conduzir as interações com seus pares por meio da língua adicional

 

A formação de professores

Um dos maiores desafios de uma escola bilíngue é a qualificação constante do seu corpo docente. Tanto a formação inicial quanto o desenvolvimento profissional docente requerem atenção especial para que o projeto de Educação Bilíngue seja bem-sucedido.

 

Os cursos de formação superior não discutem a maior parte dos temas necessários para a formação de um professor para contextos de ensino e aprendizagem bilíngue. Por esse motivo, a busca por um projeto de Educação Bilíngue para uma escola precisa priorizar a análise curricular do projeto pedagógico, a metodologia proposta e a formação de professores. 

 

Pesquisas comprovam que crianças bilíngues desenvolvem a habilidade de compreender perspectivas, pensamentos, desejos e intenções de outras pessoas de forma mais consistente do que as monolíngues (Bialystok & Senman, 2004Goetz, 2003Kovács, 2009). Algumas funções executivas, como controle inibitório,  atenção seletiva e  flexibilidade cognitiva, também tendem a apresentar desenvolvimento levemente mais acentuado nos bilíngues em comparação aos monolíngues (Bialystok, Craik & Luk, 2012). É preciso que os professores entendam como o cérebro bilíngue funciona e aprende, a fim de criarem oportunidades de aprendizagem mais significativas para seus estudantes. 

 

Os processos de aquisição de leitura e escrita também são diferentes nas crianças bilíngues. A exposição a dois sistemas de leitura e escrita amplia o repertório da criança e permite que ela construa hipóteses sobre a língua que uma criança monolíngue não seria capaz de construir. O repertório de fonemas é mais amplo; o mesmo acontece com o repertório de grafemas. Assim, tanto a consciência fonológica quanto a consciência ortográfica se desenvolvem de maneira diferente se compararmos às crianças monolíngues. É necessário que o professor esteja atento a essas diferenças e saiba criar experiências de aprendizagem consistentes a partir delas. 

 

O professor precisa de repertório para desconstruir os mitos e valorizar as verdades sobre a Educação Bilíngue. Os medos das famílias vão surgir ao longo do caminho. Por isso, é necessário ter respostas precisas e teoricamente respaldadas para esclarecer as dúvidas e transmitir segurança em relação ao trabalho proposto pela escola.  

 

Finalizando, é muito importante que as escolas compreendam que a transição para a Educação Bilíngue não ocorre sem planejamento, sem um processo de transição. É essencial decidir pela implantação de um currículo bilíngue com antecedência suficiente para que o processo seja tranquilo, bem-planejado e harmonioso. O trabalho é grande. Mas os resultados e os benefícios para os estudantes são muito mais significativos e valem todo o esforço e dedicação.

 


 

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