Antes de começar a leitura, pare e mentalize a cena: cientistas, em seu lugar de trabalho, fazendo suas atividades científicas. Guarde o que pensou na memória, pois vamos retomar isso em breve.
Em meu primeiro ano atuando numa escola, fui convidado por uma professora para conversar com um grupo do 2º ano do Ensino Fundamental. O tema, de interesse comum do grupo: Ciência e cientistas.
Chegando na sala, eu e a professora tínhamos um experimento em mente. Conversei, muito animado, com o grupo sobre a ciência e suas áreas e sobre como a ciência é uma forma de olhar e analisar o mundo em que vivemos. Uma menina da turma falou, empolgadíssima, de sua tia Paula, que é cientista, e das coisas que ela faz. Aproveitei a deixa para contar sobre como os cientistas se baseiam em observações, perguntas, hipóteses e dados para interpretar os fenômenos. Cientistas estudam, cientistas erram e acertam, cientistas pesquisam e cientistas comunicam suas descobertas. Depois dessa breve introdução, pedi aos alunos que desenhassem a frase (assim como pedi a você, que lê este texto, que a mentalizasse): “Cientistas, em seu lugar de trabalho, fazendo suas atividades científicas”.
Embora na minha fala, intencionalmente, não tenha aparecido qualquer marcador de gênero para o termo “cientistas” e suas ações, 19 dos 20 desenhos da turma eram de um homem de pele branca e cabelo branco espetado. Nas mãos, alguns tinham lupas, outros tinham tubos de ensaio coloridos, outros tinham explosões e muitos tinham tudo isso combinado. Seu desenho mental foi parecido com esses descritos?
O único desenho diferente era o de uma menina bagunceira, do fundo da sala, que desenhou “eu mesma, no futuro”. Para nossa grande surpresa, a sobrinha da cientista Paula também desenhou o cientista do estereótipo “Albert Einstein” e ficou em choque quando percebeu que o tinha feito “sem pensar”.
O papel do ensino de Ciências
O estereótipo evidenciado no caso real, mas quase anedótico, que usei para começar o texto abrange tanto a imagem da pessoa que pratica a ciência quanto as atividades científicas em si. Muitos dos estudantes, ali na sala, que adoravam as aulas de Ciências e todos os seus temas e conceitos tinham uma visão bastante distante do que é ser cientista. E esse retrato, em devidas proporções, representa o senso comum sobre a ciência. O ensino tecnicista de Ciências, focado em conceitos e técnicas, favorece a cristalização desses estereótipos nas crianças e nos adultos, compondo um senso comum de ciência desconectada de propósito e distante da sociedade.
Parece paradoxal, mas, ao mesmo tempo em que a ciência ocupa um lugar inacessível e misterioso no senso comum, há também a noção de que qualquer coisa pode ser ciência; e que palpites e opiniões podem ser equiparadas em argumentos com dados e postulados amplamente aceitos pela comunidade científica.
A comum frase “tenho uma teoria sobre isso”, ou mesmo “isso é só uma teoria”, evidencia a ignorância da natureza do conhecimento científico e dos inúmeros passos até a construção de uma teoria, de fato. Em ambas as frases, o termo “teoria” poderia ser facilmente substituído por “palpite” ou, no máximo, “hipótese”, se for uma tentativa de previsão ou explicação sobre algo. Veja abaixo a diferença entre teoria e hipótese:
HIPÓTESE é uma especulação sobre um comportamento ou fenômeno, criada a partir de observações e dados anteriores, para embasar uma verificação experimental na qual será refutada ou validada. | TEORIA é uma explicação extensivamente fundamentada e sustentada por hipóteses validadas, por conjuntos de dados e pela relação com outras teorias. |
A HIPÓTESE se relaciona ao escopo de um estudo científico. É criada para responder a uma pergunta em um contexto delimitado e se resolve dentro deste contexto. | A TEORIA abrange uma ou várias áreas do conhecimento e é aceita pela comunidade científica como prerrogativa para novas descobertas. |
O papel do ensino escolar de Ciências deve ir além da memorização de termos associados aos fenômenos naturais. Para que haja pensamento crítico e capacidade de argumentar e tomar decisão em assuntos de base científica, é necessário que o indivíduo entenda os processos de construção do conhecimento científico. Tais processos transformam a observação de fenômenos do mundo material em explicações lógicas, embasadas e críveis para a tomada de decisão em políticas públicas e para a criação de soluções tecnológicas.
Essa transformação, no entanto, não acontece como “fulano foi lá e descobriu tal coisa”, em momentos “eureka”, de descobertas solitárias e rompantes de genialidade individual. Embora haja casos isolados de grandes disrupções no pensamento científico de uma época, a construção do conhecimento na ciência é gradual e coletiva – seja em grupos de pesquisa locais, seja em trocas entre instituições, seja de forma global –, considerando o compartilhamento dos estudos com a comunidade científica por meio de veículos especializados.
A história da ciência, assim como toda história, é escrita para pessoas, sobre pessoas e por pessoas e está sujeita ao contexto social e histórico no qual se escreve. Vejamos um exemplo: a descoberta da estrutura de dupla hélice do DNA, que rendeu um prêmio Nobel a James Watson, Francis Crick e Maurice Wilkins, foi publicada há 70 anos e teve diversos momentos de reviravolta. Em alguns momentos apresentada como um golpe de genialidade de Watson ao criar o modelo tridimensional, tal descoberta foi resultado direto do trabalho de Rosalind Franklin, que foi apagada da história. Maurice Wilkins era colega de laboratório de Franklin e, descontente com os caminhos da pesquisa, compartilhou as imagens obtidas pela química britânica com os outros dois pesquisadores. Uma das imagens, a famosa Foto 51, serviu de base para a criação do modelo tridimensional e a publicação do artigo que rendeu o Prêmio Nobel alguns anos depois. Embora fosse a responsável pelas principais imagens utilizadas no estudo, Franklin não foi citada nem recebeu quaisquer créditos à época. Watson escreveu e falou em diversas oportunidades sobre a pesquisadora, criando a caricatura de mal-humorada e incompetente para analisar os dados que tinha em mãos, mostrando que a omissão do nome de Franklin provavelmente não tenha sido por acaso (Maddox, 2003). Décadas depois da descoberta e da morte prematura de Franklin, aos 37 anos, houve movimentos isolados de reconhecimento público da participação dela na descoberta, com premiações e homenagens em universidades e centros de pesquisa. Às vésperas da conclusão deste texto, no aniversário de 70 anos da descoberta da dupla hélice, algumas publicações de comemoração ainda não mencionam Franklin. Novos registros publicados em 25 de abril de 2023 demonstraram que ela estava no mesmo caminho que os ganhadores do Nobel, apresentando a estrutura de dupla hélice, mas buscando confirmação em outros dados antes da publicação (Cobb e Comfort, 2023).
Gerações de estudantes passaram pela escola aprendendo sobre o DNA de Watson e Crick, sem conhecer a contribuição da cientista Rosalind Franklin. Este e tantos outros apagamentos de mulheres na história da ciência contribuem para uma concepção equivocada de que “meninas não têm jeito para a ciência” e que “cientistas” são “os cientistas”, distanciando, ainda mais, a sociedade da ciência e da tecnologia.
Fica então evidente a importância de desenvolver, em sala de aula, um olhar crítico e investigativo sobre o fazer científico e a compreensão de que a ciência e sua história têm íntima relação com valores sociais e momentos históricos.
O quadro abaixo, adaptado de “Teaching the Nature of Science”, de Douglas Allchin, sintetiza algumas características da Natureza da Ciência como uma abordagem didática e aponta caminhos para o ensino de Ciências além de estruturas e nomes.
A Natureza da Ciência
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Na prática, a abordagem didática do ensino da Natureza da Ciência defendido por Douglas Allchin se assemelha a uma contação de histórias, com momentos de reflexão e de tomada de decisão dos estudantes a partir de dados reais e dilemas enfrentados pelos cientistas. Casos e recursos estão compartilhados no site do professor Allchin: shipseducation.net.
As possibilidades cognitivas e linguísticas para a Educação Bilíngue
Tudo o que foi tratado até aqui contribui para a defesa das abordagens ativas e investigativas como algo vantajoso de uma forma geral. No entanto, daremos maior ênfase às características dessas práticas que favorecem a melhor aprendizagem de inglês e em inglês.
O ensino de Ciências por Investigação, como metodologia e abordagem didática, visa criar situações de aprendizagem nas quais sejam valorizadas práticas e processos de pensamentos comuns ao fazer científico. Não é uma “emulação” de uma descoberta científica, mas sim a discussão e o aprofundamento em situações-problema nas quais os estudantes possam fazer observações, formular questões investigativas, elaborar hipóteses e previsões, planejar e executar experimentos, coletar e analisar dados, interpretar e comunicar suas descobertas. Tais cenários são envolventes e significativos, muito relevantes para uma Aprendizagem Integrada de Conteúdo e Linguagem (CLIL), sem o uso artificial de temas e o fornecimento de vocabulário fora de contexto.
Conto outro caso vivenciado como professor, em sala de aula, dois anos após o caso do início do texto. Em vez de ensinar sobre Sistema Circulatório, Sistema Respiratório, Sistema Muscular e Sistema Esquelético de forma isolada, apresentando vocabulário de forma artificial, uma abordagem investigativa tratou o tema de outra forma. Depois do retorno dos estudantes do 5º ano de uma aula de Educação Física, observamos que alguns estavam vermelhos, ofegantes e cansados; outros, no entanto, mesmo tendo participado da mesma aula, não ficaram tão alterados. Para alguns, a respiração estava muito acelerada? Por que isso acontecia? E o coração, porque acelerou? O que isso tinha a ver com os músculos que usaram na quadra? Estava lançada a questão que baseou algumas das aulas seguintes: “Quais fatores influenciam o efeito do exercício sobre as pessoas?”
Estimulados a criar experimentos com algumas diretrizes e materiais disponíveis, os estudantes investigaram efeitos de altura, gênero, práticas esportivas, alimentação e idade (neste último, colocaram os professores e até a coordenadora da série para correr, a fim de medir os batimentos cardíacos). Conforme os grupos foram avançando nas interpretações de seus dados, novos pequenos experimentos foram conduzidos e, sempre que precisavam de uma nova informação, buscavam nos livros disponíveis na sala de aula ou em consultas na biblioteca.
A adoção desses métodos precisa ter suporte no planejamento, com objetivos de aprendizagem bem-definidos e constantes práticas de avaliação formativa. Nem sempre os estudantes terão papel de decisão em todas as etapas do processo de investigação, pois isso exige autonomia e construção de uma cultura aberta à investigação na escola como um todo. No início, as atividades são apresentadas com questões formuladas e escopos definidos, de modo que os estudantes possam planejar e executar os experimentos, lidando com cenários mais controlados, que exigem menos autonomia. Conforme a prática for amadurecendo para docentes e estudantes, as investigações podem surgir de observações, questionamentos e hipóteses advindos deles. O que acontece de diferente em uma aula investigativa em termos de pensamento?
A Taxonomia de Bloom categoriza os processos cognitivos e estabelece níveis de complexidade do pensamento associando verbos de ação dos LOTS (Low Order Thinking Skills) aos HOTS (High Order Thinking Skills). Veja, a seguir, a tabela com as categorias e alguns exemplos de verbos de ação.
Os verbos de ação transformam processos abstratos e intangíveis como “compreender” em ações concretas, como categorizar, exemplificar e esquematizar, facilitando o planejamento, a mediação e a avaliação da aprendizagem, uma vez que se pode definir evidências e expectativas de desempenho.
Abordagens de ensino de Ciências focadas em conhecimentos conceituais e factuais trabalham usualmente com níveis de pensamento menos complexos. Nesse tipo de aula de Ciências, ações como caracterizar estruturas, nomear partes ou (re)explicar fenômenos são muito comuns, e os estudantes geralmente permanecem nos níveis Memorizar, Compreender e Aplicar, da Taxonomia de Bloom. A ciência aprendida dessa forma também reforça a ilusão escolar de isolamento entre as áreas do conhecimento. A transdisciplinaridade acontece de forma espontânea à medida que estudantes precisam conectar informações e comunicar suas descobertas.
Fornecendo oportunidades de investigação em sala de aula, cria-se cenários de maior significado e engajamento e abre-se espaço para o estudante argumentar, planejar, esquematizar, analisar, justificar, defender, refutar e muito mais. Estamos, dessa forma, trabalhando com os níveis mais altos da Taxonomia de Bloom: Analisar, Avaliar e Criar.
A adoção do Ensino por Investigação como princípio e prática pedagógica exige dos professores certo desprendimento da figura docente “que tudo sabe e tudo controla”. É essencial, para que o engajamento dos estudantes seja legítimo, que haja certa “incerteza produtiva”, pois, ao discutir quais serão os produtos e as estratégias de comunicação da investigação, os estudantes estão lidando com questões importantes para o desenvolvimento da autonomia e da autorregulação, ficando mais próximos do fazer científico. A adoção de currículos e materiais didáticos que favoreçam os processos de investigação, que permitam aos professores ter segurança da existência dos caminhos e que possibilitem aos estudantes percorrê-los sem receios é essencial para a aprendizagem de ciência em inglês e para a maior aproximação das próximas gerações com as práticas científicas.
A aula do começo deste artigo, depois de uma conversa bem menos densa que essa nossa, foi finalizada com os estudantes criando um novo desenho sobre “Cientistas, em seu lugar de trabalho, fazendo suas atividades científicas”. Todos mudaram seus desenhos, considerando diferentes perfis de cientistas e diferentes realidades para o fazer da ciência.
Convido você, leitor, a fechar os olhos e “reimaginar”, como as crianças do 2º ano.