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Bilinguismo: Neuromito ou Neurociência?

10 min

Se a popularização de pesquisas científicas tem um lado negativo, logo nos ocorre a propagação de ideias que não correspondem à realidade, seja de maneira total, seja de maneira parcial. Uma abordagem sensacionalista da mídia, em geral, e adaptações superficiais, palatáveis ao senso comum, podem ser apontadas como causas desse efeito redutor, senão totalmente equivocado, da interpretação de dados.

 

No âmbito da neurociência, cunhou-se o termo “neuromito”, utilizado para interpretações equivocadas e afirmações duvidosas a respeito da ciência do cérebro, que ganham cada vez mais espaço com a popularização e a generalização das descobertas neurocientíficas (EKUNI; ZEGGIO; BUENO, 2015).

 

Muitas das concepções equivocadas a respeito da neurociência têm suas raízes em crenças que buscam fórmulas prontas e confortáveis. Afinal, nos parece conveniente, por exemplo, a ideia de uma ginástica cerebral que, com uma série de exercícios, possa nos tornar mais aptos para determinada tarefa.

 

Esse e outros neuromitos refletem um entusiasmo frente a descobertas científicas que, em alguns casos, pode levar à aceitação de práticas, ideias ou técnicas de ensino que não têm uma base científica. Em outros casos, tais práticas podem refletir aspectos parciais da neurociência, mas não foram rigorosamente testadas em um ambiente educacional.

 

No que se refere a práticas educacionais, a neurociência não sugere a aplicação de receitas ou métodos prontos, mas promove o entendimento dos processos que estão relacionados à aprendizagem. A chegada das neuroimagens contribuiu para o desenvolvimento de práticas de educação, a partir do conhecimento mais claro de quais áreas do cérebro são estimuladas na realização de determinadas tarefas.

 

Neste artigo, elencamos cinco áreas ligadas a faculdades cognitivas em que o uso de uma língua adicional resulta em benefícios comprovados pela neurociência.

 

1. Neuroplasticidade

A neuroplasticidade é a maleabilidade do nosso cérebro, ou a capacidade, de fazer e desfazer ligações ou sinapses. A neuroplasticidade sináptica, diretamente ligada ao aprendizado, equivale à capacidade de as sinapses se fortalecerem ou enfraquecerem em resposta aos estímulos externos e internos.

 

O contexto para examinar como o bilinguismo afeta a capacidade cognitiva se apresenta por meio da neuroplasticidade, pois se constatou que o cérebro bilíngue amplifica suas possibilidades de fazer e desfazer ligações

 

A neuroplasticidade para qualquer aprendizado também envolve seu enfraquecimento com o tempo, pois caminhos pouco percorridos pelos impulsos elétricos transitando nas fendas sinápticas se desestabilizam (MERZENICH, 2013).

 

2. Maturação do Lobo Pré-frontal

Estudos a partir da análise de neuroimagens mostram que as diferentes áreas do encéfalo têm tempos de maturação distintos. As primeiras áreas a se maturarem são as extremidades posteriores do cérebro – responsáveis por funções primárias como o processamento das sensações, a visão e o movimento. As áreas envolvidas na orientação espacial e na linguagem (lobo parietal) se maturam em seguida. As áreas responsáveis por funções mais elaboradas, como a integração das funções a partir das sensações, o raciocínio e as funções executivas (lobo pré-frontal), são as últimas a se maturarem (GOGTAY et al., 2004).

 

A partir dos 12 anos, mais ou menos, o cérebro começa a perder massa cinzenta – constituída pelo corpo celular dos neurônios – e a ganhar massa branca, principalmente a partir dos 16 anos. Esta última é formada pela aglomeração de mielina, substância que produz uma capa de gordura ao redor dos axônios, condutores de impulsos nervosos. A presença da bainha de mielina nos axônios dos neurônios é o que marca, em aspectos biológicos, a maturidade da região pré-frontal do encéfalo. O espessamento da região eleva a comunicação sináptica por permitir maior isolamento elétrico e, com isso, aperfeiçoa a cognição e a capacidade de abstração (SIEGEL, 2016).

 

Entre os períodos da infância e da adolescência, ocorre a perda de receptores de dopamina. A substância é um neurotransmissor responsável por passar a sensação de prazer e de motivação às pessoas. Um dos sintomas da diminuição desse número é o fato de o adolescente sentir tédio com grande facilidade (SIEGEL, 2016).

 

Embora alta nos primeiros anos de vida, a intensidade das sinapses avança com o passar do tempo e atinge picos em fases de desenvolvimento específicas; uma delas se dá aos 12 anos de idade. Depois desse pico, o cérebro começa a eliminar as ligações (sinapses) em excesso, preservando apenas aquelas que são úteis para a pessoa, como se estivéssemos a “podar uma árvore” (SIEGEL, 2016).

 

O uso de uma língua adicional estimula a região do córtex pré-frontal, o que pode constituir uma vantagem cognitiva na adolescência, visto que a região está ligada a importantes funções como tomada de decisão, planejamento, automonitoramento de tarefas de acordo com o plano inicial, sequenciamento hierárquico e julgamento.

 

3. Atenção e Memória

Assim como há diferentes tipos de memória (sensorial, de trabalho, de longo prazo) e de atenção (sustentada, alternada, etc.), há quatro formas básicas de atenção voluntária: seletiva, alternada, sustentada e dividida (LIMA, 2005).

 

A língua adicional no cérebro bilíngue potencializa a atenção por meio de um estímulo muito grande desse recurso atencional de alternância que reverbera em outros estímulos.

 

Acredita-se que o substrato da memória é o aumento da função sináptica ou a criação de novas sinapses. Esse modelo é bastante interessante, pois, além de esclarecer como são guardadas as informações, permite explicar a atenuação das lembranças, fenômeno conhecido por todos e que ocorreria em virtude da diminuição da função sináptica causada pelo desuso (CONSENZA E GUERRA, 2011).

 

Os estudos apontam que pessoas bilíngues utilizam  mecanismos de atenção muito mais vezes do que pessoas não bilíngues; e que são capazes de trabalhar melhor em situações de tomada de decisão e em situações de distração. Vale aqui ressaltar que a atenção é um elemento essencial para a memória (MARZECOVÁ et al., 2013).

 

4. Funções Executivas

As funções executivas são outro exemplo de habilidades de ordem superior processadas na região do córtex pré-frontal: flexibilidade cognitiva, controle inibitório (inibição de um estímulo) e memória de trabalho.

 

  • O controle inibitório (autocontrole) é a capacidade de resistirmos em fazer algo tentador para privilegiar a ação desejada. Em outras palavras, faz com que possamos resistir ao primeiro impulso, de modo a não fazer algo do qual podemos nos arrepender depois. Ex.: Resistir a um doce estando de dieta.

 

  • A memória de trabalho é a capacidade de conservar as informações na mente, o que permite utilizá-las para fazer o vínculo entre as ideias, calcular mentalmente e estabelecer prioridades. É importante porque torna possível considerar as coisas a partir de pontos de vista diferentes; entender o que estamos lendo (estabelecendo relações com o início, o meio e o fim); lembrarmos de nossas boas intenções, da situação como um todo e de por que estamos fazendo aquilo (ou por que não deveríamos fazer algo); transformar as instruções em planos de ação. Ex.: Acompanhar uma conversa sem esquecer o que você quer dizer.

 

  •  A flexibilidade cognitiva é a capacidade de pensar de forma criativa e de se adaptar às demandas inconstantes. Ela permite utilizar a imaginação e a criatividade para resolver problemas. Em linhas gerais, é a capacidade de o indivíduo alternar, com facilidade e rapidez, as perspectivas ou o foco de atenção – ajustando-se de modo flexível a novas exigências ou prioridades – e a raciocinar de maneira não convencional. Ex.: Indagar-se sobre outras maneiras de tentar superar um problema.

 

As funções executivas desempenham um papel essencial no desenvolvimento das crianças e em seu sucesso até a idade adulta. Por isso, é importante encontrar maneiras de favorecer sua evolução durante a primeira infância, já que as diferenças iniciais nas funções executivas prognosticam, ao longo do tempo, resultados significativos no desenvolvimento, incluindo o desempenho escolar e os comportamentos relativos à saúde e ao ajustamento social.

 

Há evidências da relação entre as funções executivas e o desempenho escolar. Estudos demonstraram que algumas habilidades executivas, como o controle atencional presente no componente inibição, são preditoras de desempenho escolar em disciplinas como Linguagem e Matemática em crianças pré-escolares.

 

Resultados de estudos mostraram que uma pessoa bilíngue ativa as duas línguas de uma só vez, mesmo em situações em que é necessária apenas uma língua. Para resolver o conflito entre as línguas e para que a pessoa possa selecionar o apropriado para o momento, é necessária a atuação de um mecanismo que age na área pré-frontal do cérebro, que inibe o que não é o ideal para o contexto da situação, demonstrando que se pode ignorar uma informação interna.

 

Segundo Bialystok (2009), crianças bilíngues apresentam um desempenho melhor que os monolíngues em tarefas metalinguísticas que exigem controle de atenção, memória de trabalho e inibição. Corroborando essa ideia, bilíngues também se mostraram superiores em tarefas de resolução de problemas que continham sinais conflitantes.

 

Os bilíngues mostraram ter mais domínio das funções executivas em comparação aos monolíngues, como capacidade de ordenação e de decisão. A autora considera evidente que a vivência e o desenvolvimento linguístico adquirido por um bilíngue são um forte aliado quando se trata de desempenho cognitivo e organização das estruturas do cérebro.

 

5. Linguagem, Leitura e Escrita

Inicialmente, acreditava-se que o processamento linguístico fosse quase exclusivamente atribuído ao hemisfério esquerdo. Entretanto, pesquisas (BEEMAN; CHIARELLO, 1998; SCLIAR-CABRAL, 2009) apontam o hemisfério direito como um importante influenciador na linguagem humana, já que funciona como um processador linguístico.

 

Assim, é possível dizer que praticamente todas as regiões cerebrais estão envolvidas de alguma forma na linguagem. Isso porque ela se reveste de aspectos emocionais, requer a reativação de várias modalidades de memória – como visuais, auditivas e olfativas – e depende da integridade de inúmeras outras funções cerebrais (SILVA, 2018).

 

A análise de neuroimagens demonstra que diferentes regiões do cérebro exercem diversas funções associadas ao discurso e à língua. No contexto da fala, da linguagem, da expressão comunicativa e da compreensão linguística, destacam-se as seguintes regiões cerebrais (SILVA, 2018):

 

Córtex visual (responsável pela informação visual); córtex auditivo (processa a informação sonora); área de Wernicke, localizada no córtex temporal esquerdo (relativa à compreensão do discurso envolvido na língua falada e escrita); e área de Broca, na porção esquerda do córtex frontal do cérebro (relacionada à expressão da linguagem, contém os programas motores da fala).

 

Os  estudos nos mostram que as áreas responsáveis pela linguagem nos aparecem como características biológicas inatas. De maneira distinta, para aprender a ler e a escrever, vamos recrutar áreas do cérebro que, inicialmente, têm outras funções. Ao contrário da linguagem, não possuímos um aparato biológico para o processamento da leitura e da escrita, o que faz com que nosso cérebro se utilize de estruturas e circuitos já existentes para desempenhar essas tarefas.

 

Pode-se dizer que, por estar presente de modo intrínseco e constante no cotidiano de todo indivíduo, os estímulos ligados à linguagem, à leitura e à escrita constituem a verdadeira ginástica cerebral. Nesse sentido, o cérebro bilíngue apresenta benefícios claros na plasticidade cerebral por meio da potencialização das ligações sinápticas e da ampliação de repertório.

 

De maneira geral, podemos concluir que a experiência do multilíngue com dois ou mais idiomas oferece benefícios cognitivos comprovados em longo prazo. E que tais benefícios se refletem no fato de que, comparados aos monolíngues, os bilíngues costumam exibir habilidades aprimoradas de controle cognitivo, mostrar mais flexibilidade mental e lidar melhor com tarefas que envolvem troca, inibição e monitoramento de conflitos (BIALYSTOK E BARAC, 2012).

 


 

Referências

BIALYSTOK, E. Bilingualism: The good, the bad, and the indifferent. Bilingualism: Language and Cognition. v. 12, n. 1, 2009.

 

BIALYSTOK, Ellen; BARAC, Raluca. Bilingual Effects on Cognitive and Linguistic Development: Role of Language, Cultural Background, and Education. Child Development, v. 3, n. 2, p. 413–422, 2012

 

COSENZA, Ramon Moreira; GUERRA, Leonor Bezerra. Neurociência e educação: como o cérebro aprende. Porto Alegre: Artmed, 2011.

 

EKUNI, Roberta.; ZEGGIO, Larissa.; BUENO, Orlando Francisco Amodeo. Caçadores de Neuromitos. O que você sabe sobre o seu cérebro é verdade? Memnon. São Paulo, 2015.

 

GOGTAY N, GIEDD JN, LUSK L, HAYASHI KM, GREENSTEIN D, VAITUZIS AC, NUGENT TF 3RD, HERMAN DH, CLASEN LS, TOGA AW, RAPOPORT JL, THOMPSON PM. Dynamic mapping of human cortical development during childhood through early adulthood. Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America;101(21):8174-8179; 2004.

 

LIMA, Ricardo Franco. Compreendendo os mecanismos atencionais. Ciências e Cognição. Vol. 6, 113-122. 2005.

 

MERZENICH, MICHAEL. Soft-Wired: How the New Science of Brain Plasticity Can Change Your Life. Parnassus Publishing; Edição: 1. 2013.

 

SIEGEL, Daniel. O Cérebro Adolescente. São Paulo: nVersos, 2016.

 

SILVA, Renata Andrade Maia da. O desenvolvimento da linguagem oral infantil e sua relação com a Neurociência. Monografia apresentada à AVM como requisito parcial para obtenção do grau de especialista em Neurociência Pedagógica. Rio de Janeiro, 2018.

 


 

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