Alfabetização, letramento e aquisição de língua adicional na Educação Bilíngue infantil

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No atual cenário de expansão da Educação Bilíngue no Brasil, muitas famílias trazem questionamentos às escolas quanto ao processo de alfabetização de seus filhos durante a Educação Infantil. Muitos ainda acreditam que, ao expor as crianças a uma educação formal que aconteça em duas línguas de instrução – como propõe a Educação Bilíngue –, pode haver prejuízo ou atraso na fase de alfabetização e letramento dos pequenos. Mas será que isso é verdade?

 

Com os recentes estudos da neurociência aliados ao campo educacional, podemos entender melhor como o cérebro se comporta em situações de aquisição de uma língua adicional ainda na infância. Graças aos muitos estudos e pesquisas na área, hoje sabemos que, no cérebro bilíngue, as duas línguas de instrução estão sempre ativas, não havendo revezamento entre elas. Isso ocorre devido a um sistema no cérebro que gerencia a atenção quando há competição entre duas coisas ativas. Esse sistema de controle executivo é uma das funções do córtex frontal. Durante esse período de desenvolvimento infantil, o cérebro da criança conta com uma exuberância sináptica que possibilita muitas conexões e, consequentemente, contribui ativamente para o processo de aprendizado. Isso pode ser explicado pela maior capacidade do cérebro infantil de formar conexões – sinapses – entre os neurônios, também conhecido cientificamente e academicamente como “plasticidade cerebral”.

 

E a aquisição da leitura e da escrita? Como ocorre? Diferentemente do processo de aquisição oral da língua, que é natural ao ser humano, a aquisição da leitura e da escrita (alfabetização e letramento) é uma função a ser ensinada e aprendida.

 

De acordo com os estudos em neurociência, há campos específicos no cérebro, responsáveis pela linguagem oral, que podem ser detectados em exames de imagem. Entretanto, não há uma área específica do cérebro que controle a leitura e a escrita. Com isso, outras partes do cérebro, encarregadas de desempenhar outras funções, passam a exercer as funções de leitura e escrita. Esse processo também pode ser explicado devido ao mecanismo de neuroplasticidade cerebral, quando outras áreas assumem determinadas funções.

 

Todas as regiões cerebrais que processam a linguagem verbal permanecem em conexão com a região que processa o significado. Essa conexão capacita, por exemplo, o reconhecimento de uma letra como sendo ela mesma, não importando a localização e a forma que esta é usada em alguma palavra, pois ocorre uma associação na região cerebral em que se processa o significado. (LENT, 2010)

 

Todo o processo de alfabetização e letramento trabalha, de forma sistematizada, a leitura recorrente de palavras, não sendo uma metodologia mecânica ou monótona, mas, sim, uma interação com a leitura. Jogos, brincadeiras de soletração e leituras de textos diversos são apenas alguns dos meios que possibilitam que a criança tome, processualmente, consciência da estrutura relacionada a determinada palavra. A interação das crianças de forma diversificada com uma palavra cria um sistema neural que reflete na ortografia, na pronúncia e no seu significado.

 

Desse modo, o que percebemos é que, quanto mais a criança estuda, mais ela fixa o conhecimento. E quanto maior o foco, a concentração, mais consolidado será o processo de aprendizagem. Esse processo, de acordo com a neurociência, se chama neuroplasticidade – a capacidade de mudança e reorganização das conexões entre neurônios. Diretamente ligada ao processo de aprendizagem está a neuroplasticidade sináptica, que é a capacidade de as sinapses (comunicação entre os neurônios) se fortalecerem ou enfraquecerem em resposta aos estímulos externos e internos.

 

Podemos compreender, então, que, durante o processo de alfabetização e letramento, a criança precisa de contato constante com o mundo letrado, ou seja, o mundo das palavras; e de maneira sistematizada, a fim de criar o próprio sistema neural de língua. Isso ocorrerá de maneira natural entre as duas línguas de aquisição do processo de Educação Bilíngue, visto que os dois sistemas linguísticos atuam de forma integrada no cérebro.

 

Muitos pesquisadores e cientistas defendem que o bilinguismo traz contribuições sobre o processo de alfabetização. A primeira vantagem é ajudar a criança a desenvolver uma compreensão geral da leitura e suas bases em um sistema de escrita simbólico. Parece difícil, né? Mas, em outras palavras, isso significa que crianças expostas a uma Educação Bilíngue têm maior probabilidade de compreender, mais rapidamente, o funcionamento do sistema escrito e suas decodificações. Outro importante aspecto são as transferências de princípios de leitura entre as duas línguas de instrução. Crianças bilíngues tendem a prestar mais atenção às informações ortográficas de cada língua de aquisição para fazer o uso adequado de cada uma delas, e de maneira cada vez mais natural.

 

Entretanto, como as famílias podem contribuir para o processo de alfabetização e letramento de crianças na Educação Infantil em contextos de ensino bilíngue?

A Educação Bilíngue oferece oportunidades únicas para as crianças aprenderem duas línguas naturalmente, o que, como já vimos neste artigo, pode ser benéfico para o desenvolvimento cognitivo, acadêmico e cultural. No entanto, o sucesso da alfabetização e do letramento em Educação Bilíngue depende da colaboração entre escola e família. Mas, às famílias, eu digo: calma; não é preciso ser pedagogo para contribuir nesse processo tão importante na vida dos pequenos aprendizes. Por isso, compartilho aqui algumas maneiras que podem ajudar as famílias a serem ativas no processo de alfabetização e letramento das crianças na Educação Infantil em contextos de Educação Bilíngue.

 

Valorizem ambas as línguas – É importante que a família valorize e incentive o uso de ambas as línguas em casa. Isso significa interagir com a criança também na língua adicional, lendo histórias e ouvindo músicas nessa língua sempre que possível.

 

Leiam para a criança em ambas as línguas – Ler para a criança na língua nativa e na língua adicional ajuda a desenvolver a fluência e a compreensão em ambas as línguas. Além disso, isso mostra à criança que as duas línguas são importantes. Não se sente fluente o suficiente? Sem problema! Hoje existem audiobooks e vídeos no YouTube que contam histórias. Será uma incrível oportunidade não só de aprender essa nova língua, mas também de estreitar os laços com a escola e os educadores, pedindo sugestões de histórias para pesquisar na internet.

 

Compreendam e apoiem o trabalho da escola – As famílias podem ajudar e apoiar o trabalho da escola, certificando-se de que seus filhos participem regularmente das aulas e que façam a lição de casa, quando houver. Elas também podem trabalhar com a escola para criar um ambiente de aprendizagem em casa que incentive a aprendizagem das duas línguas. Afinal, como já disse a Renata aqui no blog do Be, o ambiente também ensina.

 

Incentivem a prática da língua adicional – Encontrem oportunidades para a criança usar a língua adicional fora da escola. Isso pode incluir conversar com amigos e parentes que falam essa língua, participar de atividades culturais e assistir a programas de TV ou filmes nessa língua. O mesmo serve para exposição às palavras escritas. Ainda que não saibam ler, é importante criar oportunidades de contato com essa outra língua no formato escrito, ampliando o trabalho que já é feito pelos educadores na escola.

 

Reconheçam as diferenças culturais – A Educação Bilíngue não se trata apenas de aprender duas línguas, mas também de entender duas culturas distintas. A família pode ajudar a criança a compreender as diferenças culturais e a apreciar as duas culturas. Mas atenção: cuidado para não criar ou apresentar conteúdos estereotipados sobre a outra cultura, resumindo-a a comidas e roupas típicas.

 

Sejam pacientes e positivos – Aprender duas línguas pode ser desafiador para as crianças; e pode levar tempo para que elas se tornem proficientes em ambas as línguas. A família pode ser paciente e positiva durante o processo, elogiando a criança por seus esforços e pelo progresso natural, sem cobranças descontextualizadas ou comparando aos colegas. Porque crianças diferentes recebem estímulos diferentes além da escola. Portanto, se desenvolvem de maneira diferente e cada uma a seu tempo.

 

Por fim, temos a clareza de que o processo de alfabetização e letramento em contextos de Educação Bilíngue não traz qualquer prejuízo ao aprendiz, mas precisa de compreensão e suporte ativos da família. Ao contrário do que algumas famílias imaginam, são muitos os benefícios relacionados à atenção e ao processamento das estruturas da linguagem escrita quando as crianças estão imersas nos contextos da Educação Bilíngue.

 


BIBLIOGRAFIA

COSENZA, Ramon Moreira; GUERRA, Leonor Bezerra. Neurociência e educação: como o cérebro aprende. Porto Alegre: Artmed, 2011.

HENNEMANN, Ana L. Ler e escrever requerem dedicação, exercício e tomada deconsciência. Neurociências em benefício da educação. Novo Hamburgo. 2017.

IZQUIERDO, I. Memória. 2 ed. Porto Alegre: Artmed. 2011.

LENT, ROBERTO. Cem Bilhões de Neurônios: conceitos fundamentais de neurociência. São Paulo: Atheneu, 2005.

LENT, ROBERTO. Neurociência da mente e do comportamento. São Paulo: Guanabara Koogan, 2008.

MERZENICH, MICHAEL. Soft-Wired: How the New Science of Brain PlasticityCanChange Your Life. Parnassus Publishing; Edição: 1. 2013.

Nobre, A. P. M. C., & Hodges, L. V. dos S. D. (2010). A RELAÇÃO BILINGUISMO–COGNIÇÃO NO PROCESSO DE ALFABETIZAÇÃO E LETRAMENTO. Ciências & Cognição, 15(3). Recuperado de http://cienciasecognicao.org/revista/index.php/cec/article/view/386

SIEGEL, Daniel. BRYSON, Tina Payne. O Cérebro da Criança. São Paulo: NVersos, 2015.

 


 

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